Um
defunto em minha porta
Neste
país o ditado popular se confirma de que “somente ladrão de galinha é
preso”. No meu caso, não sou ladrão, nem
assassino, nem maníaco ou pedófilo, mas acordei, definitivamente, com o “pé
esquerdo”, como dizia minha santa mãezinha, que hoje está nos braços de Deus.
Foi
um dia como tantos outros saí do trabalho no entardecer. Claro, o trânsito me
pegou na Radial Leste, havia um carro parado a meio fio da ciclovia com o pneu
furado e dois outros motoristas pararam para lhe ajudar. Enquanto esperava os
bons samaritanos concluírem a boa ação, liguei o rádio a fim de ouvir as
últimas notícias.
“Mulher
esfaqueia companheiro na porta do bar”.
“Recém-nascido
é encontrado no banheiro do Metrô Itaquera”.
“Jogo de futebol termina em pancadaria”.
Notícias
como essas nos fazem pensar em quantas desgraças ocorrem por aí e como ninguém
se importa com as vítimas, alguns acabam presos, outros impunes. É por isso que
não tenho mulher, nem filhos e assisto aos jogos de futebol em casa, em Pay-Per View, mais cômodo investir na
televisão a cabo a ir aos campos de futebol.
Finalmente
cheguei ao condomínio, o porteiro me acenou com a cabeça e me deixou entrar.
Subi as escadas até o quarto andar – ainda não consertaram o elevador - apartamento
quarenta e quatro. Fiz o que qualquer solteiro faria: coloquei a comida
congelada no micro-ondas e me dirigi ao banheiro para retirar de mim o cansaço
e a poluição. Saí do banho, jantei assistindo ao Discovery, quase cochilei no sofá e fui para a cama, meio
estremunhado, quase atropelando as garrafas de cerveja pelo caminho.
O
despertador do celular tocou às quatro da manhã, abri com dificuldade os olhos,
peguei-o e conferi a hora do meu despertar, levantei-me para trabalhar. Fui ao
banheiro, escovei os dentes, lavei o rosto e, enquanto ajeitava os cabelos de
fronte ao espelho ouvi a campainha tocar. Foi um toque leve aos ouvidos,
estranhei, já que ultimamente as pessoas tem chegado em casa tão apressadas que
mal trocamos prosa fiada. Saí do banheiro e caminhei à porta sorrateiramente,
pois suspeitava de um mau presságio. Quem poderia ser às cinco da manhã?
Poderia ser alguém me dizendo do corredor “Não é ninguém, é o padeiro!”, como a
personagem de Rubem Braga, mas o dispensara havia um mês, decidi que tomaria
café da manhã na padaria do Barbosa. E essa rotina já se repetia há um mês.
Enfim, destranquei a porta e abri-a. Ninguém no corredor além de um corpo
estirado ao chão em minha frente. Um homem trajando calças marrons e blusão
azul, corpulento, deitado de bruços com as palmas para cima e mãos abertas,
calçava botas sete léguas, nenhum conhecido que pudera me recordar. Olhei para
os lados. Ninguém. Pensei em uma brincadeira de péssimo gosto, porém ao me
abaixar e tocar no desconhecido senti-o frio e rígido.
-
Valha-me Deus! É um defunto. Sim, é verdade. Um defunto. E está bem na minha
frente, na porta de meu apartamento. O que farei? Se eu ligar para minha tia
dirá que bebi demais e estou vendo vultos, se eu ligar para o Francisco, me
dirá que ainda é cedo e ele está sonhando com carneirinhos. Já sei, para o
porteiro. Mas como vou explicar a aparição deste corpo? Não. Não.
Enquanto pensava o que fazer, deixei a porta aberta e de
súbito saltei para trás trêmulo e ofegante. Atrás de mim estava a mesinha de
centro e sobre ela meu celular. Liguei para a polícia, como todo cidadão o
faria. Descrevi o que fizera desde o momento em que acordei até o momento da
ligação, não sei se explicara detalhadamente, lembro-me somente que despejei
aos ouvidos da telefonista do 190 o meu desespero. Mandou-me continuar na linha
e mal desliguei o celular, ouvi os silvos. Rastejei-me até o canto dos sofás
ainda de pijama e chinelos e me encolhi desejando, imensamente, que tudo não passasse
de um sonho.
- Polícia! Polícia!
Não conseguia me mexer, estava atônito, senti uns puxões
pelos braços e alguém me arrastou com bastante força. Quando me dei conta do
ocorrido, estava na delegacia em uma cela isolada dos demais presos.
Levantei-me e consegui distinguir as vozes, pareciam o delegado e um
carcereiro, que veio em minha direção, confessou-me que era um sujeito que
devia dinheiro a um traficante da Cidade Tiradentes, fora deixado em minha
porta, pois o assassino encontrou em um dos bolsos o meu endereço e o
comprovante de débito bancário de uma pizza que pedira há três semanas. E
destrancando a fechadura:
- Pode sair, você está livre.
E erguendo a cabeça, disse-lhe:
-
Hoje acordei com o pé esquerdo.
Por: Vanusa Corteze, grupo 5.